Redenção e Escatologia

Redenção e Escatologia no Pensamento Português
Conceitos:
A Escatologia refere-se ao estudo das realidades últimas (éschata), no âmbito da história redentora do Mundo, remetendo o seu alcance para a Esperança na vida para além da morte e para os fins últimos de prémio e castigo nos lugares e estados bem determinados de inferno ou Paraíso. Podemos identificar a origem desta reflexão escatológica na filosofia grega de influência oriental e na tradição apócrifa veterotestamentária.

Platão, no livro X da República, fala-nos de um ciclo de reincarnações catárticas que remontam a uma tradição filosófico-moral de origem oriental. A tradição judaico-cristã, descrevendo Deus como o Eschaton, que é presente aos homens pela Graça redentora de Cristo, vai dar à História um sentido definitivo ou escatológico, concebendo-a como uma participação no bem da eternidade da vida divina.

Verificaremos que a questão clássica da imortalidade da alma, transversal às diferentes culturas e civilizações, implica uma relação entre a responsabilidade moral da temporalidade histórica e o futuro definitivo do Paraíso.
O pensamento português contemporâneo irá procurar recuperar esta complexa relação entre temporalidade e redenção, não apenas do ser humano, mas de toda a realidade, na afirmação da eterna criação que impede a queda no nada. Esta preocupação, tradicionalmente associada à herança patrística, ao pensamento medieval e aos autores de filosofia cristã de todas as épocas, nomeadamente da tradição escolástica, foi retomada contemporaneamente por autores como Amorim Viana, Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra, este último com a noção forte de Presença redentora, e tem sido desenvolvida pelas sucessivas gerações do espírito da Renascença Portuguesa, através de autores como, por exemplo, Álvaro Ribeiro, José Marinho, Agostinho da Silva e António Quadros.
E ainda mais recentemente, através do pensamento da escola jesuítica de Braga, em autores como Diamantino Martins ou José Bacelar e Oliveira, ou através da escola Franciscana de Lisboa, em autores como Joaquim Cerqueira Gonçalves ou Manuel da Costa Freitas. Ou ainda em pensadores, como Maria Manuel da Carvalho, com a noção de presença do eschaton na História[1]; Manuel Cândido Pimentel, com a noção de tempo kairológico[2]; João Manuel Duque, com a noção do tempo divino do eschaton pleno,[3] ou Anselmo Borges com a sua reflexão acerca do tempo do amor e da criação que está para além do tempo cronológico[4].
A Escatologia cristã centra-se nas doutrinas da parusia e da ressurreição, ou, usando as palavras de Leonardo Coimbra, nas noções de juízos de eternidade e de ressurreição integral ou resgate universal. Neste contexto, a Esperança na imortalidade não é uma utopia, nem uma consequência do saber e querer subjetivos, porque tem a sua topia no acontecimento da ressurreição de Cristo[5]. O homem espera de Deus a vida eterna e os meios para a alcançar. Esta Esperança não decorre logicamente daquilo que podemos saber e daquilo que devemos fazer, mas fundamenta-se numa razão que se abre a um horizonte metafísico de relação com a Graça divina.
Esta reflexão escatológica de inspiração judaico-cristã e de herança patrística, que predomina no pensamento português, refere-se ao conjunto dos acontecimentos finais relacionados com três dimensões essenciais: a) o fim do indivíduo, (escatologia individual); b) o fim da humanidade (escatologia coletiva); c) e o fim do mundo (escatologia cósmica). A nossa investigação irá remeter, no primeiro caso, para as questões relacionadas com a ressurreição dos mortos, a glorificação dos corpos, o inferno e o regresso ao Paraíso; no segundo caso, para os temas do milenarismo, da segunda vinda de Cristo e do juízo final; e no caso cósmico, para os temas da apokatástasis e da redenção integral. Transversal a todos estará sempre o debate em torno do tempo e da eternidade e o debate em torno da imortalidade da alma.
Nesta reflexão escatológica inter-disciplinar, escolhemos a temática do Paraíso, sobretudo no seu aspeto representativo, para ilustrar e dar unidade a toda a investigação. A noção de Paraíso, enquanto morada celestial que significa a vida justa e feliz na luz eterna de Deus já está presente na doutrina dos Persas no séc. VII a. C. e já reflete a contraposição entre a realidade verdadeira e infinitamente boa e a realidade do espírito maligno das trevas.
A descida aos infernos de Ulisses na Odisseia de Homero e de Eneias na Eneida de Virgílio não é um fatalismo, à maneira do determinismo estoico, porque cada um é responsável pela escolha e há uma doce esperança no inesperável da vida para além da morte, na familiaridade com os deuses ou com Deus.
Nos cultos de Dionísio dos mistérios de Elêusis, onde nasce a ideia de imortalidade da alma, tende-se a fazer a associação entre a moralidade e a vida do além, estando o retorno cíclico da alma dependente dessa responsabilização e cumprimento ou não cumprimento do Bem.


No Górgias, Platão irá desenvolver esta noção, introduzindo a necessidade do julgamento depois da morte, tema escatológico por excelência.
Os textos védicos do Hinduísmo afirmam uma imortalidade pessoal no Paraíso dos deuses, e nos Upanishads a felicidade suprema é descrita pela união com o Absoluto, quer nessa forma de imortalidade pessoal, quer na forma de absorção ou diluição impessoal nessa realidade divina do tempo sem fim e sem mudança. De forma semelhante, para o budismo, a via da salvação realiza-se no respeito pelos imperativos morais e intelectuais, pelas obrigações rituais e tem como consumação um lugar no Paraíso do «país puro», o país das flores, dos frutos e das árvores de oiro de perfumes suaves e doce música.
A tradição judaica de Paraíso funda-se na noção do jardim do Éden, como a morada das almas dos bem-aventurados, que escondido no decurso do êxodo da vida terrena, será visível no final dos tempos, nele se cumprindo o destino escatológico dos justos. À semelhança do Islão, o Judaísmo apresenta um julgamento final, que atribuirá o Paraíso aos bons e o inferno aos maus. Após a morte, enquanto esperam o julgamento final, os justos habitam na luz e os pecadores habitam nas trevas. Após o julgamento, constitui-se uma via aberta para o jardim do Éden no Paraíso celeste e outra via aberta para o vale da Geena. Também o Novo testamento se refere à presença dos justos no seio de Abraão ou no Paraíso.
Mas o Paraíso irá adquirir ao longo do tempo um alcance cósmico, que advém do carácter definitivo da obra da Encarnação que traz a redenção universal e escatológica à História: na plenitude do tempo Deus enviou o seu Filho, dando-nos a conhecer o mystherion da Sua vontade, isto é, o seu eterno desígnio salvífico. No seu sentido mais restrito e gnóstico, aponta-nos para o entendimento da morte como a forma de nos resgatar desta vida enganosa para o reino dos Céus no Paraíso celestial. No seu sentido cristão da Encarnação salvífica, aponta-nos para a realidade da Criação redentora na Graça da Presença escatológica de Deus, como a prefiguração temporal da Glória eterna do Paraíso eterno. Nesta segunda aceção, o Paraíso Celestial será a glorificação ou espiritualização do Universo Criado.
Neste contexto de irrecusável centralidade paradisíaca, o nosso estudo não se desenvolverá apenas em termos de reflexão filosófico-teológica e de expressão poético-literária, mas também em termos e representação estética. Nesse sentido, no que diz respeito ao plano de investigação, é necessário identificar, mediante o levantamento de fontes bibliográficas, a influência e desenvolvimento destas noções no pensamento e cultura de língua portuguesa desde o início da Idade Média até à época atual, selecionando os autores e as obras de maior significado e importância. Procuraremos identificar as diferentes noções de Paraíso ou de vida eterna em Deus e o significado das suas representações, presentes no pensamento português ao longo das várias épocas.



[1] Cf. Maria Manuel da Carvalho, A consumação do Homem e do Mundo, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2002.
[2] Cf. Manuel Cândido Pimentel, De Chronos a Kairós - Caminhos Filosóficos do Padre António Vieira, São Paulo, Idéias & Letras, 2008.
[3] Cf. João Manuel Duque, Fronteiras - Leituras Filosófico-Teológicas, Porto, Universidade Católica Editora – Porto, 2011, pp. 153-174.
[4] Cf. Anselmo Borges, Corpo e Transcendência, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 543-586.
[5] Cf. Maria Manuel da Carvalho, A consumação do Homem e do Mundo, p. 10.











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