Idade Média

Redenção e Escatologia 
no Pensamento Português 

VOL I
 Idade Média (SÉC IV-XV)
 
A herança patrística na Galécia e na Lusitânia

Pensamento e arte do Islão do Gharb al-Andalus

Pensamento e arte Hebraica

Pensamento Franciscano

Filosofia e espiritualidade cristãs

Literatura doutrinária de edificação

Literatura social e política

Poesia trovadoresca galego-portuguesa

Literatura cronística e literatura hagiográfica da geração de Avis

Poesia palaciana e teatro vicentino

Arte cristã do Românico e do Gótico

Livros iluminados


No período da Idade Média e no contexto da herança patrística, para além da reflexão de âmbito escatológico, em torno da crítica do presbítero bracarense Paulo Orósio à heresia milenarista, por esta se fundar numa interpretação literalista do Novo Testamento e em torno da Esperança no Paraíso da Glória, pela presença da graça na vitória sobre o pecado e a imperfeição[1], encontramos também a crítica à literatura sacro-apocalíptica, através de uma exegese eclesial dos textos apocalípticos, como acontece, por exemplo em Apríngio de Beja, que através d’ O Tratactus in Apocalypsin procura sobrepor as leituras simbolista, alegórica e moral à interpretação literalista.

Apríngio de Beja interpreta o tempo escatológico como o tempo da Igreja e não apenas o tempo do fim do mundo: os mil anos da ressurreição iniciam-se na ressurreição batismal dos justos pelo Espírito de Cristo ressuscitado[2]. Verificamos uma evolução na interpretação da noção do tempo escatológico, que passa do âmbito do imaginário mítico-escatológico de uma cosmovisão apocalíptica e demiúrgica, presente nas doutrinas ascéticas e espiritualistas de origem gnóstica de correntes como o priscilianismo, para a progressiva valorização da realidade corpórea e defesa
da redenção do Mundo e da História.



De igual maneira o tema da redenção está presente na cultura islâmica do Gharb al-Andalus, não só em termos religiosos e artísticos, mas também em termos teológicos e filosóficos. Sob o magistério de autores como Avicena e Averróis, que dedica, de forma explícita, uma parte da sua reflexão à escatologia, esta temática atravessará igualmente a cultura islâmica da época. Este debate acerca da dignidade da realidade criada, em contraposição com a noção platónica do corpo como cárcere da alma e do mundo como entrave à libertação do espírito, estará presente em toda a Idade Média, como por exemplo na reflexão filosófico-teológica franciscana que, contra a gnose cristã, afirma o Mundo como Templo de Deus.

Santo António de Lisboa é um dos autores que mais contribui para a progressiva passagem da teologia do temor e desprezo do Mundo à teologia do amor e da Redenção do Mundo. Nesta perspetiva devem-se considerar ainda as obras de Frei Álvaro Pais e de Frei André do Prado. Esta temática escatológica aparecerá também na obra anónima O Boosco Deleytoso Solitario, em torno do problema da morte e dos caminhos para atingir a plena união com Deus na Jerusalém Celeste.

Também as obras O Horto do Esposo e O livro da Corte Imperial devem ser estudadas sob esta perspetiva. Nestas obras da espiritualidade medieval devemos destacar a noção redentora de concordância entre a natureza e graça no caminho contemplativo da celestial cidade do Paraíso. Entre os autores a investigar neste âmbito devemos destacar ainda o dominicano Frei Payo de Coimbra e o abade do Mosteiro de Alcobaça Frei João Claro.

A literatura doutrinária de edificação, de âmbito conventual, é muito representativa desta preocupação com os temas do Juízo Final, do Inferno e do Paraíso. O livro Apocalipse do Lorvão de 1189, com forte influência do Beato de Liébana, tem nas representações bíblicas do livro do Apocalipse um dos motivos principais das suas iluminuras. Neste contexto um destaque especial também para a simbólica do mundo terreno como imagem do mundo celestial, presente no livro das aves do Mosteiro do Lorvão de 1183, cujo original é atribuído de Hugo de Fouilloy. O tema da redenção do homem e do mundo é central em toda a literatura hagiográfica dos mosteiros de Santa Cruz de Coimbra e Santa Maria de Alcobaça, com destaque para os Comentários ao Evangelho (Psalterium Catenatum, contemplaçom que fez santo Sam Bernardo) e para os livros das vidas dos santos (coleção mystica de Fr. Hylário da Lourinhã): vida de Santa Eufrasina; vida de Santa Maria Egipcíaca, vida de Tarsis, vida de Santo Aleixo, vida de uma Monja, vida de Santa Pelágia.



Também as obras de ascese e mística se centram neste tópico da redenção, como por exemplo, O Castelo Perigoso de Frei Roberto, O livro do Desprezo do Mundo, A imitação de Cristo e Os Tratados de Devoção, com as suas descrições acerca do dia do juízo e do inferno. O mesmo acontece com as obras de narração bíblica e teologia moral: Epístolas de São Paulo; Vida de Cristo; Vergel de Consolação; Espelho da Cruz; Livro das confissões; Livro dos costumes; Os sete tratados cartusianos, com a referência explícita às penas do Inferno e às alegrias do Paraíso. Também a Crónica da Ordem dos Frades Menores em Antioquia apresenta avisão do céu e do Inferno e a cidade celeste.

Mas a temática das visões do inferno e do paraíso, não pertence apenas ao domínio da literatura monacal, mas também está presente na literatura social e política historiográfica, romanesca e hagiográfica. No campo da historiografia universal, destaque para o Auto dos apóstolos (vestígio da VI parte da General Estória de Afonso X); Histórias do Abreviado Testamento Velho (Bíblia de Lamego - vestígio de uma tradução da historia Scholastica de Pedro Comestor). Nas obras historiográficas ou de hagiografia política, uma referência para as obras: Vita Theotoni, em que aparece o tópico da Jerusalém Celeste de que o mundo é figura sensível; Vita Tellonis; De expugnatio Scalabis; Anais (Chronica Gottorum ou Chronicon Lusitano).

No campo da ficção ganham particular relevância as obras do chamado ciclo arturiano e ciclo arturiano pos-vulgata ou Pseudo-Boron (matière de Bretagne): Estoire del Saint Graal - Joseph d’Arimathie; Estoire de Merlim; Lancelot du Lac; Queste del Saint Graal; Mort Artu; Destruiçam de Jerusalem. Por outro lado, a literatura visionária medieval tem como um dos temas de eleição o contraponto entre as noções de paraíso terreal e as noções de paraíso celestial, detendo-se de forma demorada nas visões do Outro-Mundo, com destaque para as seguintes obras: Conto de São Brandão; Visão de Trezenzónio; Conto de Santo Amaro; Visão de Túndalo; Purgatório de São Patrício; história de São Barlaão e Josafá; Livro do Caminho.

De forma semelhante, o tema da redenção e escatologia estará presente na poesia trovadoresca galego-portuguesa, na cronística, na literatura hagiográfica da geração de Avis, na poesia palaciana e no teatro vicentino. Em relação à poesia trovadoresca, em concreto na Cantigas de Santa Maria do Rei Afonso X, o sábio (1252-1284). Quanto à cronística, devemos referir as seguintes obras: Crónica de Portugal de 1419, Crónica do Infante Santo D. Fernando, Frei João Álvares; Chronica do Muito Alto e Muito Esclarecido Príncipe D. Afonso Henriques, de Duarte Galvão. No contexto da geração de Avis, vai desenvolver-se a noção de visão messiânica e providencialista da história de Portugal, com destaque para as crónicas hagiográficas de D. Duarte, Infante D. Pedro e para Fernão Lopes, que nas suas crónicas de D. Pedro e D. João I fala da instauração da sétima e última idade do tempo. Uma última referência ainda para o Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (cortes de D. Afonso V, D. João II, D. Manuel) e para a obra de Gil Vicente com os seus autos sobre o juízo divino e o destino das almas.

Em termos de arte medieval do período entre o séc. XIII e o séc. XV, para além da importância das manifestações arquitetónicas, esculturais e iconográficas românicas e góticas, não podemos deixar de referir as iluminuras dos Livros de Horas de D. Duarte e das bíblias e missais antigos de Sta. Cruz de Coimbra, Lorvão e Alcobaça.



No campo da arte religiosa, podemos assinalar ainda o pintor Flamengo Jan van Eyck (1390 - 1441), que visitou Portugal pelas mãos do Duque de Borgonha e da Infanta D. Isabel, cuja arte nos faz participar, nas palavras de Manuel Ferreira Patrício, da experiência antropagógica do Paraíso. Uma experiência, que situa Adão no Paraíso perante a realidade natural para lhe acrescentar ativamente a realidade cultural. Significa a formação do Homem, em si mesmo, no seu acontecer cultural em assembleia criadora com os irmãos.


[1] Cf. Orósio de Braga, Livro Apologético, XXXIII, in Comonitório & Livro Apologético, edição bilingue de José Carlos Miranda, Lisboa, Alcalá - Faculdade de Teologia – UCP, 2005, p. 265.[2] Cf. Apríngio, Comentário ao Apocalipse, Ed. De Júlio da Cunha Antunes e Isidro Pereira Lamelas, Lisboa, Alcalá, 2007.








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